outubro 27, 2003

Política e cultura 2 – Hobbes e Locke

Hobbes foi, politicamente, um apoiante devotado dos Stuarts e da monarquia reaccionária que aqueles tentaram em vão manter em Inglaterra, quer antes de Cromwell, quer durante a Restauração. Pelo contrário, Locke, meio século mais novo, era contra o regime dos Stuarts, e participou no movimento político que liquidou a Restauração e levou ao trono da Inglaterra Guilherme de Orange.

Hobbes é temível porque a sua doutrina é clara, radical e detestada. Os seus postulados relativos à natureza humana não são lisongeiros e as suas conclusões políticas são despidas de qualquer liberalismo.

A filosofia de Hobbes é materialista e mecanicista - a moral reduz-se ao interesse e à paixão. Na base de todos os nossos valores, há o instinto de conservação. O homem, por natureza, procura ultrapassar todos os seus semelhantes: ele não busca apenas a satisfação de suas necessidades naturais, mas sobretudo as alegrias da vaidade. As expressões pelas quais Hobbes o descreve são célebres: "Homo homini lupus", o homem é o lobo do homem; "Bellum omnium contra omnes", é a guerra de todos contra todos.

Assim sendo, o homem tem medo de ser morto ou escravizado e esse temor, em última instância mais poderoso do que o orgulho, é a paixão que vai dar a palavra à razão. É o medo, portanto, que vai obrigar os homens a fundarem um estado social e a autoridade política. No estado de sociedade, como no de natureza, a força é a única medida do direito. No estado social, o monopólio da força pertence ao soberano. É nesta doutrina profundamente individualista que Hobbes fundamenta o poder absoluto.

Escreve Hobbes no Leviatã: Antes que se possa utilizar das palavras justo e injusto, é preciso que haja um Poder constrangedor; inicialmente, para forçar os homens a executar seus pactos pelo temor de uma punição maior do que o benefício que poderiam esperar se os violassem, em seguida, para garantir-lhes a propriedade do que adquirem por Contrato mútuo em substituição e no lugar do Direito universal que perdem.

Quanto a Locke, este deriva a lei civil da lei natural, racional, moral, em virtude da qual todos os homens - como seres racionais - são livres e iguais, têm direito à vida e à propriedade e, na vida política, não podem renunciar a estes direitos, sem renunciar à natureza humana. Locke admite um estado primitivo da natureza antes do estado civilizado. Não, porém, no sentido brutal e egoísta de inimizade universal, como dizia Hobbes; mas com um sentido moral, em virtude do qual cada um sente o dever racional de respeitar nos outros a mesma personalidade que nele se encontra.

Mas em ambos há o mesmo individualismo que contestou a tradição cristã da lei natural. E é inegável que o individualismo de Hobbes a Locke marcou profundamente toda a tradição liberal ulterior. Enquanto princípio fundamental, data de Hobbes. As conclusões deste passarão dificilmente por liberais: todavia os seus postulados estão completamente impregnados de individualismo. Rejeitando os conceitos tradicionais da sociedade, da justiça e da lei natural, é sobre o interesse da sociedade e indivíduos distintos que Hobbes funda a sua teoria dos direitos e obrigações políticas.

Sob a forma de crença na igualdade moral de todos os homens, é ainda o individualismo que se encontra no pensamento político dos Puritanos. E o lugar que ele ocupa em Locke, por ser ambíguo, não é menos considerável por isso. Todas estas doutrinas ligam-se estreitamente à luta pela liberalização do Estado, luta na qual a teoria de Locke e dos puritanos constitui, em grau igual, a principal justificação.

E todos os desenvolvimentos subsequentes, Bentham, etc., assentam nas fundações colocadas por Hobbes.

Os problemas que levanta a moderna teoria da democracia liberal não são senão outra expressão da dificuldade essencial que já aparecia nas origens do individualismo: este é de facto a afirmação de uma propriedade, está ligado indissoluvelmente à posse, ou seja, à tendência em considerar que o indivíduo não é em nada devedor da sociedade da sua própria pessoa ou das suas capacidades, das quais é, por essência, o proprietário exclusivo. O indivíduo não é concebido nem como um todo moral nem como a parte de um todo social que o ultrapassa, mas como o seu próprio proprietário.

O indivíduo não é livre senão na medida em que é proprietário da sua pessoa e das suas capacidades. Ora a essência do homem é ser livre, independente da vontade dos outros e esta liberdade é função do que possui.

Nesta perspectiva a sociedade reduz-se a um conjunto de indivíduos livres e iguais, ligados uns aos outros enquanto proprietários das suas capacidades e daquilo que o exercício destas lhes permite adquirir, em suma, a relações de troca entre proprietários.

Quanto à sociedade política ela apenas se destina a proteger esta propriedade e a manter a ordem nas relações de troca.

Hobbes estará assim tão longe de Locke? O que é substantivo em ambos, não é similar? E as suas opções políticas não serão apenas um epifenómeno de somenos importância?

Publicado por Joana em outubro 27, 2003 07:59 PM | TrackBack